O BaianaSystem foi a banda mais esperada do festival Maloca Dragão, que aconteceu dos dias 27 a 30 de abril em Fortaleza. A banda iria tocar na cidade no começo do ano na Bienal da UNE, porém teve o show cancelado por conflitos na agenda. Desde que a banda havia sido confirmada no Maloca, a expectativa pairava sobre o público do festival de rua, que é gratuito e se consolida como uma grande manifestação plural que abarca os mais diferentes públicos da capital cearense. Só quem já foi em um show do BaianaSystem sabe o que esperar: a energia transmitida pela banda é quase palpável e transforma a plateia. É importante frisar que a banda se apresentou no Poço da Draga, uma comunidade à beira mar em Fortaleza, em um evento gratuito que reuniu travestis, lésbicas, gays, bissexuais, mauricinhos, “topzeiras”, velhos, famílias, amigos, vagabundos, membros da comunidade, ricos, vendedores ambulantes, crianças, bêbados, gente! Todo tipo de gente.
Foi nesse contexto que os conterrâneos se apresentaram pela primeira vez no Ceará, no mesmo dia da morte de Belchior. Há um certo misticismo com os sons do Nordeste. Muito do que é produzido aqui reflete e bebe das fontes que fundaram e transformaram o Brasil. O BaianaSystem traz referências do soundsystem jamaicano, afoxé, pagode, rap, raggae, música eletrônica, arrocha, forró, tudo misturado em uma sonoridade atual e diálogo plural. A habilidade de mutação na música da banda é completamente transferida para as apresentações ao vivo. No calor de Fortaleza o BaianaSystem encontrou um público que tremulava no chão. Obviamente muitas pessoas estavam ali pela movimentação, pela bebida ou até pela homenagem a Belchior, que aconteceria após o show. Mas era quase inacreditável ver o impacto causado pela banda no Poço da Draga, que ficou apinhado, apertado, recheado de gente.
Quem era fã da banda pulava e cantava loucamente com Russo Passapusso, que começou o show com uma exaltação ao “rapaz latino americano”, bradando Salve Belchior com os cearenses em coro aos berros. A banda fez uma releitura de “Como Nossos Pais” no pandeiro, adaptando Belchior à Bahia. “Lucro: Descomprimindo”, “Jah Jah Revolta”, “Bala na Agulha” e “Panela” levantaram a “pipoca”. Passapusso dedicou “Invisível” aos que trabalhavam no evento, vendedores ambulantes, moradores da comunidade, em um singelo reconhecimento.
O show fluiu de maneira tão intensa que, ao mesmo tempo que não parecia ter fim, acabou rápido demais. A banda mal teve tempo de tocar “Playsom” e já estava fora do palco. Teve suor. Coração acelerado. Chão tremendo. Fora Temer. União. Após o caos harmônico da apresentação, conversei com Russo Passapusso e Roberto Barreto, que comentaram sobre a apresentação, Belchior, projetos futuros e política.
Como foi se apresentar em Fortaleza pela primeira vez?
Em janeiro, quando deveríamos ter vindo pela primeira vez (Bienal da UNE), nós ficamos muito ansiosos, ficamos até o último dia no “vai-não vai”, aquela coisa toda. Dessa vez nós começamos a turnê no Pelourinho, que é meio que a nossa casa, nós não tocávamos lá há 8 meses. Fizemos shows em João Pessoa, Recife e finalizamos em Fortaleza. Quando isso foi definido, nós ficamos muito animados. Foi incrível mesmo, nós ficamos surpresos com o lugar, com o festival, o envolvimento das pessoas. O falecimento de Belchior, mesmo sendo uma notícia triste, traz uma áurea dele pra essa história toda.
Hoje se foi um filho ilustre do Ceará e uma das figuras mais proeminentes da nossa MPB. Tal como vocês, carrega um lastro de preocupação social, uma politização da massa. Como a morte de Belchior impactou a apresentação?
O veículo da emoção foi muito forte dentro disso. Decidimos não tocar na sexta-feira, porque era o dia da greve, então fizemos os shows de Recife e João Pessoa no sábado e viemos virados pra cá. Chegamos aqui e recebemos a notícia que o Belchior tinha feito a passagem, então a gente começou a entender a nossa música com a veia mais espiritual possível. Eu sei que hoje em dia, com a Internet, quando você pesquisa uma banda você vê ali “itens relacionados” e tudo mais, você começa a se apegar muito na estética, mas o que move a música popular brasileira é a essência, e não a estética. A estética é trabalhada na roupagem, você pode vestir qualquer roupa, mas sua essência, que é quem você é na arte, é o sumo da história, [é o que] Belchior desperta na gente. Nós nunca esquecemos e começamos a explorar isso de uma forma bem mais profunda. O show foi bem melhor justamente pela energia que foi trazida e o público compreendeu. Salve, Belchior!
Por que vocês decidiram não tocar no dia da greve?
Nós decidimos fazer a turnê Nordeste, alocando três cidades em um final de semana, para aproveitar a mesma energia nordestina. Quando nos demos conta, o show de sexta-feira iria cair no dia da greve, que era uma coisa muito forte, que estava mexendo com todo mundo. Então era um posicionamento, que condiz com outras ideias que temos, e a nossa postura. Acho que estamos em um momento que todo mundo precisa estar muito atento às coisas, e devemos falar sempre de uma maneira sincera, porque isso é o que mais vale. A gente nunca programa essas coisas. O “Fora Temer” que aconteceu no Carnaval de Salvador foi muito natural, é uma resposta que você sente. Assim como hoje.
O BaianaSystem toca no Carnaval de Salvador, em shows de rua, festivais dentro e fora do país. Existe diferença na preparação de cada show e em como ele vai ser executado?
Existe. São sempre situações diferentes, nós temos um repertório, mas como a banda tem o formato de soundsystem isso é muito mutável. Vai muito da reação do público, então quando a gente toca em um festival que tem outros artistas tocando, somos contagiados por aquela energia nova. Cada festival tem sua cara, curadoria, estilo. Só de estarmos aqui já dá pra sentir como é o Maloca. O legal de tocar em festival é a confraternização. Ainda mais na rua, em espaços abertos. É onde mais gostamos de tocar.
A apresentação de vocês no Lollapalooza foi uma das mais fervorosas, com grande repercussão do público. Como foi a experiência de tocar em um festival de grande porte?
Esse foi o primeiro show que nós fizemos depois do Carnaval em Salvador. Então nós estávamos com muita expectativa para tocar em São Paulo, porque a gente tem ido bastante pra lá e temos um público construído. Mas o Lollapalooza é especial. Nós tocamos mais cedo, mas mesmo assim a plateia estava animada e os vídeos tem repercutido bastante, nós ficamos surpresos com a resposta do público. Foi incrível.
A apresentação de vocês traz muito caos, mas um caos no qual as pessoas se sentem incluídas. O Poço da Draga é uma comunidade de Fortaleza que sofre com diversos problemas sociais. O que isso faz vocês sentirem? Até porque BaianaSystem ao vivo é uma coisa completamente diferente do que se tem no disco.
Nós nascemos no ao vivo. Tanto que para chegarmos no disco “Duas Cidades”, Ganjaman (produtor) teve um trabalho duro de tentar pegar a energia das apresentações e tentar dar um formato de disco. Mas os shows são muito mais vivos, é muito mais próximo do que nós conseguimos fazer com a nossa expressão artística. Às vezes nós somos muito caos, de informação, referências e todo mundo tocando. Pode ser difícil organizar as ideias, mas quando a gente consegue fechar no system de uma forma mais lógica com “isso mais isso dá isso”, essas combinações de ideias e músicas trazem reações em cadeia que nos alimentam.
“Duas Cidades” é um álbum sobre pluralidade, e a mistura dos dois tipos de cidade está muito presente. Como vocês aplicaram essa ideia no disco?
Quando nós estávamos finalizando o disco e tentávamos entender o conceito do álbum, essa ideia do “Duas Cidades” veio de uma maneira muito forte, justamente por essa pluralidade. Tinha essa música do Russo que nós tocávamos há algum tempo, que tem muito impacto ao vivo, e traz esses conceitos de “cidade alta, cidade baixa”, essas divisões. Depois nós nos demos conta de que isso estava acontecendo em todas as cidades, o país estava muito dividido, então nós ampliamos o dualismo. Isto ficou muito forte no trabalho e influenciou a identidade visual, o conceito todo do disco. A capa é uma foto tirada no Carnaval e representa muito bem isso, com aquela faixa de divisão. Esses são símbolos com os quais nós já trabalhávamos há algum tempo. Quando falaram pra nós que iríamos tocar no Poço da Draga, que é uma comunidade que sofre problemas com a especulação imobiliária, nós trouxemos esses questionamentos. Só o fato das pessoas falarem sobre isso já chamam a atenção.
“Duas Cidades” traz características muito fortes da Bahia, porém a música também tem um sentimento de pertencimento muito intenso. De onde vem a inspiração para criar um material tão heterogêneo e contemplativo?
A sonoridade é um reflexo das nossas referências baianas, como a guitarra e a percussão, a forma de tocar e cantar. E nós tentamos dialogar com o que está acontecendo em outros lugares do mundo, com o que escutamos em locais diferentes. As pessoas percebem nossa conexão com nossa terra, mas também conseguem ver essas outras ligações. Eu acho que isso acontece com tudo, nós viemos tocar aqui no festival e percebemos que vocês estão sentindo a mesma coisa, sentindo as mesmas aflições que nós. E quando a gente consegue encaixar isso no sistema, faz sentido.
Recentemente vocês lançaram o single “Invisível”. Existe mais algum projeto no futuro?
Rapaz, a gente tá sempre trabalhando em coisas novas (risos). Estamos fazendo novas músicas e vamos voltar a fazer shows fora do país (a banda tocará no Roskilde Festival, na Dinamarca). Começamos a trabalhar com um maestro incrível lá em Salvador, chamado Bira Marques, que é da Orquestra Afrosinfônica. Não sabemos ainda o que vai ser, mas ele já está fazendo arranjos para nossas músicas. Enfim, estamos trabalhando!
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