Sempre foi dito que a escrita fúnebre de Nick Cave, principalmente no Birthday Party e na primeira fase de Cave e os Bad Seeds, que vai até Tender Prey (1988), deve-se muito ao fato dele ter perdido o pai em um acidente de carro, quando tinha 19 anos. A grande verdade é que se a influência existiu, ela nunca agiu diretamente nos temas. Existe um padrão identificável na escrita de Cave: quando ele faz a narrativa de seus personagens, ele é verborrágico, fluente; e, quando surge em tom pessoal, os versos tendem a ser mais econômicos. O disco mais pessoal de Cave, até então, foi The Boatman’s Call (1997). Sem medo da escrita boca de porco, ao entregar, em primeira pessoa, versos do tipo “eu não acredito em anjos, mas ao olhar pra você, eu pondero se isso é verdade”. Na mesma canção (“Into My Arms”), ele consegue transitar para algo mais inspirado e afirma: “Eu não acredito em um Deus intervencionista, mas eu sei que você, querida, acredita”.
Avancemos ao presente.
Chegamos ao momento, onde Nick Cave precisa lidar com a dor de ter perdido o seu jovem filho de 15 anos, Arthur Cave, de uma maneira estúpida, ao cair de um penhasco, em julho do ano passado.
Em “Jesus Alone” – faixa que abre o seu novo álbum, Skeleton Tree – Nick utiliza um híbrido, outro recurso recorrente em suas letras. Híbrido? Sim, explico. Refrão escrito em primeira pessoa, com versos em terceira, invocando personagens e lugares fictícios. Mas no meio dessa ficção, em tom impessoal, ele revela sua dor: “Você acredita em Deus, mas não conseguiu nenhuma imunidade especial por esta crença” (…) “Você é uma memória distante na mente do seu criador, não consegue ver?”.
Ele se ressente por seu Deus não ser, de fato, intervencionista.
Sonoramente o álbum continua de onde Push the Sky Away (2013) parou, os drones, o korg solitário do brilhante Warren Ellis, e até o coro de crianças. Push the Sky Away foi um álbum mais grandioso, Skeleton Tree é mais aparado, mas parece vir da mesma costela de referências sonoras. Push the Sky Away é mais verborrágico, sobre os personagens de Cave, transitando para o híbrido em alguns momentos. Já Skeleton Tree, começa híbrido e afunda cada vez mais dentro do luto do compositor. As canções tornam-se diretas e pessoais, conforme elas avançam no disco. Não é possível passar pelas três últimas músicas sem se emocionar, “I Need You”, “Distant Sky” (um dueto belíssimo com a cantora dinamarquesa Else Torp) e “Skeleton Tree”. É como se queimasse os olhos, ao olhar diretamente para a escuridão. E aqui o artista está absorto, entregue ao luto, em versos econômicos, mas fatais. Não precisa que mais nada seja dito.
Na urgência de tentar dar algum sentido de esperança, Cave encerra o disco dizendo: “E está tudo bem agora”. Não está. Agora é diferente. Mesmo que Cave tenha recorrentemente utilizado a morte como redenção para algo divino e melhor do que a violência da vida, desta vez, é diferente. O disco acaba com a sensação de que ainda existe muita dor para ser mitigada. Mitigada, porque dizem que a dor pela morte de um filho nunca é completamente curada.
Não posso esquecer de mencionar outras potentes canções do disco: “Magneto” e “Saturno Rings“. Saturno é o segundo astro regente no mapa astral de Nick Cave, depois de Mercúrio. E a primeira música onde ele mostra o seu segundo grande sofrimento. Além da perda do filho, ele sofre porque a sua mulher está sofrendo. É isso.
Além do álbum, o documentário One More Time With Feeling será lançado hoje no cinema, e deverá mostrar mais sobre este momento, onde o pessoal se mistura com obra, de uma maneira sem precedentes nestes 30 anos de uma carreira plural e bem-sucedida.
NOTA: 4.5/5
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